sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Mulher de outras dimensões


Comparada a Jodie Foster e uma das físicas mais citadas do mundo, a americana Lisa Randall lança livro para explicar o que há de novo nas pesquisas sobre a natureza fundamental do Universo

Flávio de Carvalho Serpa escreve para a Folha de São Paulo

Ser comparada a Jodie Foster, a bela artista de enormes olhos azuis, deixa a física teórica Lisa Randall constrangida. "É engraçado", respondeu ela meio secamente à Folha. Numa entrevista a Ira Flatow, premiado âncora da rádio pública americana NPR, a pergunta emergiu de novo, como sempre acontece. Mas, dessa vez, a curiosidade em saber como se sente uma mulher que pode ser tão bonita como uma artista de Hollywood e inteligente ao ponto de adicionar mais dimensões às clássicas equações de Albert Einstein acabou virando um pequeno escândalo e terminando nas páginas do jornal "The New York Times". O blog de ciência "Cosmic Variance" acusou Flatow de estar passando uma cantada ao vivo na cientista, sem falar no conteúdo machista implícito do tipo "bonita e inteligente".
Randall disse à Folha, por e-mail -nos intervalos entre as viagens de promoção e conferências sobre seu recém-lançado livro "Warped Passages" ("Passagens Torcidas", sem tradução no Brasil)-, que nem tem tanta certeza se se parece com Foster, a não ser pelo fato de a atriz ter também fama de ser muito séria.
A curiosidade é justificável porque a foto que adorna sua página acadêmica na Universidade Harvard, onde ela leciona física, feita há muitos anos por um fotógrafo cult de New York, Jack Lindholm, é realmente hollywoodiana. Mesmo agora, aos 43 anos, solteira e sem filhos, Randall é uma figura que salta aos olhos, embora isso a deixe constrangida. Não tanto por posições feministas. Ela é altamente competitiva, acredita no poder dos desafios e não quer nenhum desconto por ser mulher. Seu currículo dá inveja a qualquer marmanjo barbudo da área de física teórica.
Além de ser a primeira mulher titular na cadeira de Física em Harvard, a universidade mais conceituada do mundo, ela coleciona primeiras titularidades femininas em Princeton e no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Foi a física teórica mais citada do planeta durante cinco anos, com mais de 10 mil citações.
A carreira de Randall começou na famosa e de difícil acesso Stuyvesant High School, em Nova York, onde foi colega de classe do não menos famoso cientista das teorias de cordas Brian Greene, autor de "O Universo Elegante" e "O Tecido do Cosmo".
No começo deste ano ela foi de novo para a ribalta, meio a contragosto, quando o presidente de Harvard, Lawrence Summers, cometeu a gafe de declarar que são poucas as mulheres na ciência por causa de diferenças genéticas. Na polêmica que estourou ele acabou tendo de admitir que falou demais e Randall foi indicada para trabalhar numa força-tarefa com o objetivo de monitorar a participação científica feminina e sugerir medidas reparadoras da situação. Leia a seguir a entrevista:

- Como a sra. se sente quando a comparam com a Jodie Foster?

É engraçado. Imagino que deva ser lisonjeiro, mas também é perturbador. Em toda a carreira você tenta afastar o fato de que você tem uma aparência diferente e apenas fazer seu trabalho. É muito estranha a atenção que dão a isso. E realmente não tenho certeza de que me pareço com ela. Mas ela é uma das atrizes com aparência mais séria que conheço e muitas mulheres com mentes científicas se parecem com ela. É uma coisa gozada.

- Quando ouvem falar de outras dimensões muitas pessoas logo pensam em coisas como mundos paralelos, planos espirituais ou ficção científica. Já lhe pediram explicações sobre esses assuntos?
Muita gente pergunta sobre essas coisas. Perguntam-me também sobre experiências de quase morte, explicações sobre a consciência e outros fenômenos que esperam entender com outras dimensões. Respondo que só falo sobre leis físicas que entendemos. Especialmente quando se trata de assuntos como os que estudo, que são meio abstratos e podem soar como ficção científica. É muito importante não misturar fatos com ficção. Tomo muito cuidado para não fazer isso. Não sabemos ainda como o Universo é na realidade, mas conhecemos relações que podem ser deduzidas usando nossos conhecimentos da gravidade. Se fizermos determinadas suposições, algumas dessas suposições podem até ser testadas com experiências. Isso não pode ser feito quando se especula sobre planos espirituais ou em muitas das idéias de ficção científica. Só aceitei o uso de dimensões extra na física depois que muitos cientistas, inclusive eu, tentaram explicações alternativas. Explicar fenômenos espirituais com outras dimensões não tem respaldo científico. Não é o que me interessa, uma vez que não acho isso um caminho para avançar o conhecimento e porque isso é completamente diferente do que entendemos com a física.

- O público leigo se surpreende também quando a sra. fala que a gravidade é uma força muito fraca? Afinal o senso comum diz que um bom tombo pode ser fatal.
A idéia de que a força da gravidade é fraca está baseada em expectativas baseadas na mecânica quântica e na teoria da relatividade especial. Baseado no poder das outras forcas, como a eletromagnética ou as forças atômicas, era de se esperar que a gravidade fosse mais forte. Afinal um pequeno ímã atrai um clipe de papel competindo com a força gravitacional do planeta inteiro. É um grande mistério porque as diferentes forças têm intensidades tão diferentes.

- O grande colisor de partículas do Cern (Conselho Europeu para a Pesquisa Nuclear, localizado na Suíça) denominado LHC, que começa a funcionar em 2007, pode comprovar partes da sua teoria envolvendo outras dimensões. A sra. sugeriu algum tipo de experiência específica?
Dou sugestões e depois estudo e interpreto resultados. Realmente estou interessada em algumas "assinaturas" que podem aparecer nos experimentos. Se a teoria com a qual explicamos a fraqueza da gravidade for correta, vão aparecer rastros de partículas chamadas Kaluza-Klein, que teoricamente viajam em outras dimensões. Estudando massa e propriedades dessas partículas vamos poder inferir a existência de outras dimensões. É por isso que essas teorias são tão instigantes. Se estiverem corretas, vamos saber nos próximos cinco anos. O LHC (Grande Colisor de Hádrons) do Cern, um enorme acelerador de partículas que vai colidir prótons, terá energia suficiente para criar partículas que viajam em outras dimensões, se elas existirem. Medindo massas e propriedades dessas partículas vamos poder aprender sobre outras dimensões.


- Em "Warped Passages", a sra. diz não saber por que um mundo de três dimensões poderia ser tão especial a ponto de responder pela realidade observada. Mas depois publicou um artigo na revista "Physical Review Letters" sugerindo que as leis da física podem ter uma preferência por três e por sete dimensões. A sra. vê algum tipo de idéia darwiniana nisso?
É um tipo de conceito darwiniano: a sobrevivência do mais apto. Apesar de não haver nada nas leis fundamentais da física que diga que as três e sete dimensões são especiais, se você deixar um Universo de dez dimensões (como o sugerido pela teoria das cordas) evoluir, ao final você vai ver o domínio de objetos de três e sete dimensões chamados branas, nos quais provavelmente estamos. Eles sobrevivem porque diluem menos quando o Universo se expande e quando as interações são levadas em conta.

- Será que o Super-Homem poderia vir ao nosso mundo trazendo forças nativas de outras branas ou dimensões, desafiando a gravidade?
É possível. Isso não necessariamente desafiaria a gravidade, mas talvez eles experimentassem outras forças e a interação gravitacional diferentemente do que experimentamos.

- Como a sra. se sentiu quando Lawrence Summers, reitor da Universidade Harvard, disse que existiam poucas mulheres cientistas devido a diferenças inatas entre os sexos?
Suas afirmações estavam baseadas em idéias não-comprovadas cientificamente. Felizmente as pessoas sabem disso agora. Ele certamente agora sabe.

- A sra. notou algum progresso na situação desde que passou a participar da força-tarefa em Harvard para tratar da pouca participação das mulheres na ciência?
A administração tem agora um superintendente-assistente e um reitor-assistente com a ocupação explícita de monitorar os assuntos de participação das mulheres. Por enquanto é mais em nível de corpo docente, mas existem sugestões para melhorar o ambiente para estudantes também.

- E para outras minorias, o que acha que deve ser feito?
Só porque faço ciência e sou mulher isso não me torna uma especialista nesses assuntos. Eu faço física. Sociólogos e outros profissionais estudam explicitamente essas questões. Posso perceber situações que não são ideais para mulheres e minorias, mas não necessariamente sei o que podemos fazer para mudar. Certamente ter minorias mais ativas na ciência vai melhorar as coisas. Essa é uma das muitas razões que me levaram a escrever um livro. Ver pessoas como eu fazendo um livro certamente vai encorajar mais pessoas que não se ajustam aos estereótipos a entrar nesse campo. Acredito que a universidade encarar a existência de preconceitos e iniqüidades explícitas ou veladas já será um importante passo na direção certa. Deveriam existir orientações para ensinar ou lidar com estudantes direcionadas a pessoas que desavisadamente ignoram as minorias ou as tratam diferentemente. E em qualquer nível devem existir maneiras de lidar com problemas se e quando eles ocorrerem. E queremos também ter certeza de que o sistema educacional tenha um nível de excelência de modo que as pessoas não tenham de depender de redes e comunidades de apoio para aprender coisas e serem autoconfiantes.

- O que a sra. pensa da função do desafio intelectual no desenvolvimento? No seu tempo de colégio, quando foi colega de classe de Brian Greene, vocês se sentiam desafiados? Eram considerados nerds? 
Fomos para uma escola "ímã". É uma escola pública, mas que você tem de passar por testes para entrar. Portanto os alunos eram mais inteligentes e valorizavam mais a educação do que os das escolas típicas. Eu gostava muito porque a escola era em Manhattan (eu morava no Queens). Tinha tanto tipo de gente a que as categorias mais comuns não se aplicavam de modo geral. E, sim, acho que se sentir desafiado é muito importante. Se os alunos se sentem entediados eles não vão ter inspirações. Desafios movem as pessoas para a frente. E quase sempre elas acham isso divertido.

- A sra. escreveu "Warped Passages" para mostrar a um público mais amplo que as mulheres também podem fazer ciência. Já teve algum retorno dessa audiência?
Essa não foi a única razão porque escrevi o livro. É um benefício colateral. Escrevi o livro para explicar o que está acontecendo no campo da nossa pesquisa. Queria tornar isso acessível ao público em geral. Gostaria que o público em geral entendesse nossas motivações e algumas conexões e gostaria também de desmistificar a ciência. Recebi um retorno muito positivo de homens e mulheres que leram o livro. Pessoas ficaram entusiasmadas. Apesar de eu ter pensado mais em mulheres jovens que deveriam fazer ciência, recebi muito retorno positivo de mulheres mais velhas, felizes de saber que existem pessoas fazendo coisas como as que faço. Mesmo que elas tenham feito escolhas diferentes, elas se sentem satisfeitas em saber que existem mulheres fazendo o trabalho que faço.

- Por que a sra. não se sente à vontade falando sobre "essas coisas de mulher na ciência"?
Freqüentemente sou questionada sobre esse assunto e em geral eu respondo. Mas meu trabalho não é sobre mulheres na ciência. Eu faço física. Quero ajudar a melhorar a situação, mas também penso que a melhor forma de fazer isso é me concentrar na ciência.

- No caso de mulheres cientistas, a maternidade é o principal problema?
Não sei se tem uma coisa que seja o principal problema para todas as mulheres ou todas as pessoas. Com certeza é difícil conciliar a carreira com a família com tantos problemas de disponibilidade de tempo que as duas coisas exigem. Seria bom conseguir facilitar tanto quanto fosse possível. Mas eu não sei a resposta.

- A sra. levou um tombo grave quando escalava rochas e ficou meses engessada. Não é uma cientista tradicional que fique confinada a uma sala ou laboratório?
Gosto de atividades físicas. É uma pausa de bem-estar contra a rotina de ficar apenas sentada numa sala. Mas estou sem tempo para tomar tombos de novo.

Obra busca explicar fraqueza da atração gravitacional

A maçã que se esborrachou na cabeça de sir Isaac Newton, diz a lenda, acordou-o com um lampejo que iluminaria toda a história futura. A mesma força que acertou a fruta madura na sua cabeça era a que mantinha a Lua e os astros em suas órbitas celestiais, concluiu Newton.
A física teórica Lisa Randall também teve o seu encontro duro com a gravidade, mas em vez de estalo criativo acordou num helicóptero, voando às pressas para o hospital, com o calcanhar quase destruído e escoriações generalizadas. Ela foi acidentalmente atraída pela gravidade, quando escalava uma rocha no Parque Nacional de Yosemite. A pancada gravitacional teve sua compensação, como no caso de Newton. Durante vários meses, presa a uma cama com a perna engessada, rascunhou o recém-lançado "Warped Passages" e pôde refletir ironicamente sobre a gravidade. A ironia é que seus trabalhos acadêmicos tentam explicar justamente o que os físicos consideram ser a desprezível fraqueza dessa força, em comparação com todas as outras conhecidas.

Se a força da gravidade fosse um pouco mais forte, o tombo de Yosemite resultaria num bonito epitáfio: aqui jaz a jovem Lisa Randall, a física teórica mais citada nos últimos cinco anos, aquela para quem o inglês Stephen Hawking guarda o lugar na mesa enquanto ela vai ao pódio dar suas esotéricas palestras teóricas, sobre dimensões adicionais ocultas do nosso Universo. A fraqueza da força gravitacional sempre foi uma pedra no sapato da física. É o que os cientistas chamam de "questão hierárquica": a gravidade é dezenas de milhões de bilhões de vezes mais fraca do que seria de se esperar no chamado modelo padrão da física de partículas. Em termos práticos, como gosta de explicar Randall, basta um ímã para anular toda a força gravitacional do planeta sobre um clipe ou um grampo de papel. "Warped Passages" não é, portanto, uma obra de exploração dos mundos com mais dimensões, mas sim uma que usa o recurso de uma dimensão adicional oculta para explicar a debilidade da força gravitacional.
Não espere encontrar especulações sobre como poderiam ser os seres grotescos ou formidáveis de uma dimensão onde a força da gravidade é tão poderosa. Mas ao longo do livro vão aparecer coisas espantosamente exóticas como as branas, o nome genérico da nossa popular membrana que é uma brana particular de somente três dimensões, como o couro de um tambor quando ressoa, ele obedece a equações matemáticas da mesma forma que uma corda de violino.
A totalidade do Universo é uma coisa chamada "bulk", ou "espaço de imersão", com muitas dimensões. Dentro dele podem existir várias branas-mundo, também de dimensões variadas, mas sempre com menos dimensões que o "bulk". Vivemos numa brana privilegiada (do nosso ponto de vista, claro), com três dimensões espaciais e o tempo. Mas por algum acidente cósmico ou por força de alguma lei desconhecida, a força da gravidade, que faz maçãs e alpinistas despencarem, não mora na nossa brana. Estão quase grudadas em outra, batizada de brana-Planck, onde ela reina absoluta e com potência plena.
Quando Randall e seu colega Raman Sundrum fizeram as contas, descobriram que o caminho entre as branas contidas no "bulk", o nosso Universo, era fortemente torcido. Quer dizer, a força da gravidade (ou os grávitons, suas partículas portadoras) tinha de desgrudar da brana-Planck e se retorcer para vazar até a nossa brana, a que contém todas as galáxias visíveis. Por essa razão a gravidade chega aqui tão fraca, teoriza a pesquisadora americana.

(Folha de SP, 27/11)

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